domingo, 23 de março de 2008

Dois Níveis de Causação, Duas Biologias

As teorias que as ciências utilizam para compreender o mundo incluem mecanismos. Um mecanismo pode ser caracterizado como um conjunto de processos materiais por meio dos quais causas se conectam de modo que produzem um fenômeno natural. Os mecanismos são propostos pelas teorias como processos que estão por trás dos fenômenos que vemos na natureza e as ciências tipicamente explicam um determinado fenômeno elucidando o mecanismo que o produz (Meyer & El-Hani, 2005).

Existem dois tipos básicos de mecanismos em diferentes níveis de causação que podem ser usados para explicar fenômenos biológicos e, por conseguinte, dois tipos de explicações científicas que pode ser oferecidas a perguntas do tipo “Por quê?”. Os níveis de causação distinguem-se por explicar fenômenos biológicos em termos de mecanismos que atuam em escalas temporais próximas ou distantes de sua ocorrência (Meyer & El-Hani, 2005). Essa foi a base que Mayr (1998) utilizou para propor uma distinção entre dois grandes ramos da Biologia, a Biologia das causas próximas ou mecanicista, e a Biologia das causas distais ou histórica (Mayr, 1998, 2005).


A Biologia mecanicista lida com a fisiologia e bioquímica do funcionamento de todas as atividades de organismos vivos, sobretudo com todos os processos celulares e genômicos. Em última estância tais processos de funcionamento podem ser explicados de maneira puramente mecanicista por química e física.




A Biologia histórica lida com todos os aspectos que abrangem a evolução. O conhecimento histórico não é necessário para a explicação de um processo de funcionamento puramente mecanicista. No entanto, é indispensável para a explicação de todos os aspectos do mundo vivo que envolvem a dimensão do tempo histórico (Mayr, 2005).






Ao perguntarmos por que determinada espécie de ave do hemisfério norte inicia sua migração anual em determinada data, podemos obter duas respostas distintas e igualmente válidas, segundo os dois níveis de causação.



Uma delas nos dirá que a duração do dia, ao atingir um valor crítico, desencadeia uma resposta hormonal e neurológica que inicia a migração. A outra trará informações sobre como a resposta hormonal e neurológica veio a existir, e nos dirá que a espécie adaptou-se à variação sazonal da disponibilidade de alimento sincronizando seu deslocamento com as estações do ano. O que se deu pela reduzida mortalidade das variedades que possuíam mecanismos hormonais e neurológicos com maior sensibilidade para a pista ecológica sazonal de migração (Ferreira, 2003).





Dadas as diferenças de enfoques, os dois campos da Biologia diferem na natureza das discussões mais frequentes. Em ambos os campos se fazem perguntas de tipo “O quê?” para obter fatos necessários para a análise.



Porém, a Biologia mecanicista explica por quê um fenômeno ocorre principalmente por meio de uma resposta a uma pergunta sobre como ele ocorre (Meyer & El-Hani, 2005). Esse enfoque é centrado na descrição causal do mecanismo responsável. Em uma escala de tempo reduzida, descrever parece perigosamente com explicar, mas se alargarmos temporalmente os fenômenos veremos cada vez mais a necessidade da busca pela razão de existência do que foi descrito (Ferreira, 2003).





Enquanto que a Biologia histórica explica por quê um fenômeno ocorre por meio de uma resposta a uma pergunta sobre para quê ele ocorre, ou seja, a explicação é centrada na razão de sua existência. A forma da resposta da Biologia histórica à pergunta “Por quê?” remete ao valor adaptativo e à história filogenética do grupo em questão.




Mesmo que seja possível descrever, em incomparáveis microdetalhes, todos os fatos causais da história de todas as girafas que já viveram no mundo, a menos que se suba um ou dois níveis e pergunte “Por quê?” – caçando as razões endossadas pela Mãe Natureza -, não será possível explicar as regularidades manifestadas, tais como o pescoço comprido das girafas (Dennett, 1995).






Até no nível molecular não se pode fazer Biologia sem se perguntar quais as razões daquilo que está sendo estudado. É preciso perguntar “Por quê?”. Darwin não mostrou que não devemos fazer tais perguntas, ele nos mostrou como respondê-las. Darwin explica um mundo de causas distais com um princípio que é, sem dúvida, mecanicista porém no fundo totalmente independente de significado e propósito (Dennett, 1995).


Os dois níveis de causação e as duas Biologias não estão hierarquicamente estruturadas, são independentes e de um grande valor heurístico para uma visão integrada de qualquer aspecto da Biologia. Apesar dessa possível independência, é no trânsito entre esses níveis de causação, em termos de reflexões integradoras, que se encontra uma contribuição especialmente útil para a produção de novas hipóteses e de novos entendimentos, pois eles representam um arcabouço teórico e metodológico coerente e complementar para o estudo dos fenômenos biológicos.



Referências


Dennet, D. C. (1995). A Perigosa Idéia de Darwin: a evolução e os significados da vida. Rio de Janeiro: Rocco.

Ferreira, M. A. (2003). A Teleologia na Biologia Contemporânea. Scientiae Studia, v. 1, 2: 183-93.

Mayr, E. (1998). O desenvolvimento do pensamento biológico. Brasília: Unb.

Mayr, E. (2005). Biologia, Ciência Única. São Paulo:Companhia das Letras.

Meyer, D. & El-Hani, C. N. (2005). Evolução: o sentido da biologia. São Paulo: UNESP.

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